Este artigo foi originalmente publicado na Edição Especial da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD de junho de 2020 “A Pandemia de Covid-19 e os Desafios do Desenvolvimento”. Leia ou faça download da edição completa aqui.
Autor: José Luís Monteiro, Project Officer na Oikos – Cooperação e Desenvolvimento
No passado mais ou menos distante, cada vez que havia uma catástrofe que afligia uma região, a população era apanhada desprevenida e havia uma tendência para tentar descobrir quem ou o que teria ofendido os deuses. Por isso não é de estranhar que entre as curas propostas para a peste negra houvesse opções tão díspares como procissões dos flagelantes até à ingestão de esmeraldas.
Quase 7 séculos depois, a ciência avançou, a sociedade mudou e toda a nossa relação com o planeta evoluiu significativamente. Hoje é quase universal o reconhecimento de que a emergência de novas doenças contagiosas é um fator de risco global, sendo consideradas por muitos como uma das grandes ameaças existenciais (acontecimentos com potencial para extinguir a humanidade).
Ao longo do tempo têm vindo a crescer os apelos e alertas da comunidade científica e de várias instituições sobre a necessidade de levar esta ameaça a sério. Atualmente tornaram-se célebres peças como o artigo de 2007 na Clinical Microbiology Reviews, que alertava para o potencial surgimento de uma pandemia tipo SARS no sul da China devido à abundância de “wet markets” e à presença de animais exóticos para consumo humano, ou a TED Talk de Bill Gates de 2015, em que é lançado um alerta para a necessidade de aumentar a capacidade de resposta global a uma potencial pandemia. No entanto antes disso os alertas abundavam, por exemplo em 1993 Robin Marantz Henig, no livro “A Dancing Matrix” citava o prémio Nobel Joshua Lederberg, ao afirmar que “os vírus são a principal ameaça ao domínio da Humanidade sobre o planeta”, antes de dedicar o principal capítulo do livro à ameaça por vírus emergentes. Com base na informação de diversos cientistas, a autora identifica os principais fatores e condições que poderiam levar ao surgimento de novos agentes patogénicos potencialmente devastadores – alterações climáticas, urbanização maciça, crescente proximidade entre humanos e animais de produção e selvagens que atuam como reservatórios virais – e fatores de aceleração da disseminação global desses agentes – conflitos, economia global e viagens aéreas internacionais.
Apesar destes alertas, e do trabalho substancial realizado por diversos organismos nacionais e internacionais no sentido de detetar precocemente e desenvolver planos para combater a próxima pandemia (OMS, CDC, ECDC, etc.), a baixa prioridade que os decisores políticos dão a este problema é evidente. Por exemplo, apenas 3 anos após Bill Gates apelar para um investimento anual de 4,5 mil milhões de dólares na deteção, prevenção e tratamento de potenciais doenças emergentes, a maior economia mundial cortou em 80% o financiamento ao seus programas de prevenção de pandemias (eliminando até o acompanhamento “in loco” da China) e mais recentemente, em plena pandemia, suspendeu o seu financiamento à OMS.
Independentemente das questões políticas e das derivas conspiratórias que abundam relativamente à pandemia que atualmente vivemos, é impossível ignorar a contribuição do desrespeito pelo ambiente na situação atual. Segundo o Center for Global Health Science and Security, pelo menos 60% dos novos agentes patogénicos que infetam humanos têm origem animal, 70% dos quais têm origem em animais selvagens. Convém relembrar as origens do VIH/SIDA (chimpanzés) ou MERS e SARS (morcegos), que provêm de mutações que permitem que o vírus salte a barreira de espécie e consiga infetar humanos. Outro fator ambiental que aumenta tremendamente o risco de aparecimento destas novas doenças é a produção intensiva de animais de produção. Por exemplo, no caso da MERS, o vírus saltou de morcegos para camelos criados em cativeiro, e posteriormente para humanos.
A existência de grandes populações animais condensadas em espaços pequenos, muitas vezes com higiene deficiente, aumenta de forma quase exponencial o potencial para a ocorrência de mutações, incluindo as que permitem a infeção de humanos.
Outro fator ambiental que convém referir é a desflorestação. Á medida que os seres humanos abrem caminhos por zonas anteriormente inexploradas, o contacto com novos vírus (para os quais não temos defesas) é inevitável.
Esta situação é ainda agravada pelo facto das zonas desflorestadas serem frequentemente ocupadas pela pecuária, criando condições ideais para a multiplicação, mutação e ampliação de novos vírus. Para além do contacto direto entre humanos e novos vírus, a desflorestação leva a que animais selvagens procurem novos habitats para sobreviver, levando-os muitas vezes a migrar e a disseminar os agentes patogénicos em áreas de maior densidade humana.
A crescente tendência para o comércio internacional de espécies exóticas também contribui para este fenómeno. Apesar de estar presente na nossa memória recente as imagens dos “wet markets” de Wuhan e o seu papel como potencial ponto inicial da pandemia de COVID 19, convém apontar que não é só “lá longe” que existem estes problemas. Em 2004, duas águias contrabandeadas a partir da Tailândia foram apreendidas no aeroporto de Bruxelas, verificando-se posteriormente estavam infetados com uma estirpe altamente perigosa de H5N1. Numa altura em que todos os sistemas de vigilância de pandemia estavam a controlar a migração de aves de oriente para ocidente, esta apreensão mostrou uma falha no sistema e expôs como o contrabando de animais selvagens permitia que um vírus viajasse milhares de quilómetros e, quase instantaneamente, alcançasse o centro de uma das regiões mais densamente povoadas do mundo.
As alterações climáticas são outro dos fatores que mais importância tem no agravamento das potenciais ameaças à saúde global.
Para além de forçarem alterações da distribuição global de muitas espécies animais, com consequente impacto na distribuição de muitas zoonoses (doenças transmitidas de animais para humanos e vice-versa) e da expansão para norte de muitos vetores de doenças (recentemente um especialista falava possível expansão na Europa de doenças como a febre amarela, a dengue ou a malária), o degelo poderá originar novas ameaças. Não temos neste momento qualquer maneira de saber que tipo de microrganismo permanece conservado e viável quer nos glaciares, quer nas extensas regiões de “permafrost”.
Se é evidente que as questões ambientais tiveram impacto no aparecimento e propagação do SARS CoV 2, também é também cada vez mais evidente que a presente pandemia tem um impacto considerável no ambiente global, tal como demonstrado pelos inúmeros relatos sobre a redução de emissões e de poluição devido à diminuição das atividades humanas, como por exemplo o facto de a China ter reduzido as suas emissões de gases com efeito de estufa em 25% durante o primeiro trimestre de 2020 devido à redução da atividade industrial e do transporte (o CO2 que não foi emitido é o equivalente a todas as emissões do continente africano durante 1 ano), ou de Portugal não queimar carvão para produzir eletricidade há 2 meses. Esta melhoria ambiental foi demonstrada por diversos meios, desde os mais tecnológicos, como as imagens de satélite que demonstram a redução de gases nocivos nos países em quarentena, até os mais anedóticos, como a divulgação de imagens da água “límpida” dos canais de Veneza.
A grande questão é se estas melhorias são duradoras ou se perderemos tudo com o regresso à “normalidade”. Aqui as opiniões divergem, mas são maioritariamente negativas, com alguns especialistas a considerarem que vamos voltar à situação inicial (com os ganhos a serem momentâneos e o saldo nulo) e outros a considerarem que a pressão para reativar rapidamente a economia poderá levar à suspensão de normas ambientais e a uma situação pior que a inicial (saldo final negativo).
Para que o saldo ambiental desta pandemia não seja negativo é preciso vontade política, pressão popular, mudança de comportamentos e sobretudo coerência.
Institucionalmente, apesar dos sinais de que a União Europeia quer fazer do seu European Green Deal a base da recuperação económica do continente, há uma crescente pressão para o relaxamento de normas ambientais em áreas como a Agricultura, Transportes ou Indústria como forma mais célere de recuperar a economia.
Se há algo em que a maioria dos especialistas concorda é que não podemos voltar à situação anterior, é preciso um “novo normal”. As novidades não podem ser apenas o facto de passarmos a andar de máscara ou aceitarmos o sacrifício de algumas liberdades individuais e da privacidade em prol do bem comum. Este “novo normal” terá que surgir das lições aprendidas com a pandemia de COVID 19, terá que passar por reorientar a economia para priorizar a satisfação de necessidades em detrimento do crescimento como objetivo último (o atual deus que exige sacrifícios). Teremos que avaliar a forma como nos relacionamos com o trabalho (afinal muitas mais pessoas poderiam fazer teletrabalho do que se supunha), com a educação (setor que tornou evidente a necessidade de igualdade de acesso) ou com a informação (onde as fake news e o jornalismo espetáculo criaram um público cheio de teorias não baseadas em factos).
Sobretudo teremos que passar a dar mais atenção ao que os cientistas dizem e assumirmos de uma vez por todas que os avisos são reais. E aqui o elefante no centro da sala são as alterações climáticas.
Se, face ao impacto económico da COVID 19, os 4,5 mil milhões de dólares anuais que custaria manter um sistema de resposta a pandemias em estado de prontidão total já parecem um bom negócio (só o pacote apresentado pela EU para ajudar a economia europeia seria suficiente para custear o sistema durante 120 anos), então porque é que os decisores políticos insistem em ignorar os alertas sobre as alterações climáticas?
Se estamos no começo de uma nova era, parece-me uma altura ideal para citar a primeira frase do meu romance favorito “A beginning is the time for taking the most delicate care that the balances are correct.”. O momento para assegurarmos um futuro de que nos orgulhemos é agora, e não podemos deixar que este despertar forçado tenha sido em vão.
Fonte: www.plataformaongd.pt