* Artigo de José Luís Monteiro e Janaina Plessmann, projeto Time to Seed.
Ricos ou pobres, jovens ou idosos, todos nós comemos e a comida é uma daquelas coisas que nos deveria unir. Infelizmente, mesmo sendo a alimentação, tal como a respiração, uma necessidade básica para a vida, a nossa relação com a comida é muito diferente consoante o nosso nível de rendimento e o nível de desenvolvimento do país em que vivemos.
Isto é bastante evidente quando se olha para as estatísticas globais relativas ao consumo de alimentos. De acordo com números recentes (2006-08) da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura), globalmente, o consumo diário médio per capita (kcal/pessoa/dia) é de 2.790kcal (o mínimo absoluto para uma pessoa se manter saudável é de 1.800 kcal, enquanto que a máximo absoluto é 2.700kcal para uma pessoa com estilo de vida extremamente ativo). No entanto, enquanto nos países desenvolvidos o consumo diário médio é de 3.430kcal (chegando a 3.800kcal na Áustria ou os Estados Unidos), em países menos desenvolvidos é 2.120kcal (chegando a níveis tão baixos como os 1.590kcal ou 1.680kcal no Burundi).
As diferenças tão são extremamente evidentes quando se olha para a forma como os alimentos são desperdiçados nos países desenvolvidos e em desenvolvimento. Cerca de um terço de todos os alimentos produzidos para consumo humano acaba por não ser comido por ninguém, sendo perdido ou desperdiçado. Apesar da perda e do desperdício contribuírem para a diminuição dos alimentos disponíveis em fases subsequentes da cadeia de abastecimento alimentar, são dois fenómenos muito diferentes. Enquanto a “perda de alimentos” mede a diminuição da massa comestível que ocorre na produção, colheita, pós-colheita e fases de processamento (sendo mais prevalente nos países em desenvolvimento, devido à falta de infraestrutura adequadas e aos baixos níveis de tecnologia, que originam alimentos de baixa qualidade e facilitam a contaminação, reduzindo a quantidade de alimentos disponíveis no mercado e contribuindo para elevar os preços dos alimentos), o “desperdício alimentar” é definido como a perda de alimentos que ocorre durante as fases de comercialização e consumo final. Este ato de “deitar fora alimentos” é um problema comportamental e é prevalente nos países industrializados.
Isabelle Denis, da FAO, considera que os alimentos desperdiçados ou perdidos têm um impacto ambiental considerável (devido ao consumo de recursos como energia, água, fertilizantes, pesticidas, etc. – utilizados para produzir este alimento que não serão consumidos por ninguém), mas também graves impactos sociais (as perdas de alimentos durante a colheita e armazenamento diminuem os rendimentos dos pequenos agricultores, originando subidas de preços dos alimentos e excluindo a população mais pobre). Ela diz que “reduzir as perdas de alimentos, pode ter um impacto na melhoria dos meios de subsistência e segurança alimentar dos pequenos agricultores e dos consumidores mais pobres”.
A percentagem de alimentos produzidos que não chegam a mesa do consumidor é semelhante nos países desenvolvidos e em desenvolvimento (Fig.1), tanto o padrão e como o seu impacto é muito diferente. Enquanto os consumidores desperdiçam uma quantidade imensa de comida nos países desenvolvidos (95-115k/ano), nos países em desenvolvimento muito pouco é desperdiçado (6-11kg/ano). Como é possível observar na Fig.2, a combinação de uma capacidade de produção mais baixa e taxas de perda semelhantes tem um enorme impacto sobre a quantidade de alimentos per capita disponível (76% mais alimentos estão disponíveis para o consumidor médio nos países desenvolvidos).
Fig.1 – A comparação entre os padrões de consumo alimentar dos países desenvolvidos e em desenvolvimento (baseado em dados de Gustavsson et al 2011 – Global Food Losses and Food Waste).
Fig.2 – Quantidades reais de alimentos usados e desperdiçados nos países desenvolvidos e em desenvolvimento (baseado em dados de Gustavsson et al 2011 – Global Food Losses and Food Waste).
A realidade Portuguesa
O cenário dos desperdícios alimentares em Portugal é, tal como uma série de outras áreas, um enigma. Em primeiro lugar, a agricultura Portuguesa é uma manta de retalhos de pequenas quintas tradicionais com novas e mais modernas explorações agrícolas, e como resultado das escolhas feitas no passado, Portugal depende da importação de quantidades bastante consideráveis de produtos para alimentar sua população (sendo autossuficiente em apenas algumas categorias de produtos).
Além disso, o padrão de consumo Português reflete três momentos históricos altamente divergentes. Em primeiro lugar temos a pobreza que afetou uma grande percentagem da população portuguesa antes da revolução de 1974, depois temos o boom económico que se seguiu adesão de Portugal à Comunidade Europeia e, mais recentemente, a enorme crise económica dos últimos anos, que trouxe de volta velhos medos de pobreza e desnutrição (segundo o Eurostat, 2,5 milhões de cidadãos portugueses vivem em risco grave de pobreza) e que está a trazer de volta uma atitude de “waste not, want not” em relação à comida.
Nos 2011, o relatório da FAO “Global Food Losses and Food Waste (Perdas globais de alimentos e desperdício alimentar)”, produzido por um grupo de investigadores liderados por Jenny Gustavsson, determinou, usando dados de 2007, que para a Europa a média anual combinada de desperdícios e perdas alimentares era de 280 kg por pessoa, com 34% (95 kg) provenientes de perdas ao nível do consumidor. Em 2012, um projeto de português (PERDA – Projeto de Estudo e Reflexão sobre o Desperdício Alimentar) utilizou dados tão recentes quanto 2011, para determinar que, para Portugal, estes números eram tão baixo como 97 kg por pessoa, com 31% (30 kg) provenientes de desperdício ao nível do consumidor.
Apesar destes números serem relativamente positivos no contexto europeu, ainda há muito espaço para melhorias, e várias ONG estão a desenvolver ações específicas para atacar as principais causas tanto do desperdício alimentar, como perda de alimentos em Portugal. Por exemplo, o projeto de ProVe (www.prove.com.pt) é um esforço concertado de mais de 16 associações de desenvolvimento local para reduzir o tamanho das cadeias comerciais associadas aos alimentos, permitindo relações quase diretas entre consumidores urbanos e pequenos agricultores. A Re-food (www.re-food.org) é uma organização em crescimento que concentra seu trabalho num nível micro-local, redistribuindo as refeições não vendidas (restaurantes e cantinas) por aqueles que delas mais necessitam (famílias identificadas ou instituições de solidariedade). Outro projeto recente é a Fruta Feia (www.frutafeia.pt), uma cooperativa que vende fruta que não atingiu os altos padrões visuais e estéticos estabelecidos pelas grandes cadeias de distribuição.
Ainda há espaço para novas intervenções sobre este assunto, por exemplo a Oikos está a começar uma nova plataforma on-line que permitirá a ligação direta entre a oferta (por pequenos agricultores e produtores), com a procura (consumidores, pequeno comércio e instituições de solidariedade social), reduzindo assim a cadeia de fornecimento e permitindo aos agricultores contornar as grandes cadeias de distribuidores e os seus padrões “de beleza”.
A terrível crise que Portugal ainda enfrenta certamente deixará novas e terríveis cicatrizes na nossa consciência coletiva, mas há esperança que ela também ajude a alterar positivamente o valor que nós, enquanto nação, damos à comida e a quem o produz.